Primeiro-ministro de Timor-Leste diz que direito internacional é só para alguns países, não para todos
Para Xanana Gusmão, existe hoje uma incapacidade da comunidade internacional de coordenar esforços de paz; em conversa com a ONU News após discursar na Assembleia Geral, ele comentou os desafios de Estados frágeis em conflito ou pós, conflito, com ênfase nas dificuldades de financiamento.
Em entrevista para a ONU News, o primeiro-ministro de Timor-Leste, Xanana Gusmão, denunciou que muitos contextos de conflito são originados porque países ou empresas de fora armam a população e criam confrontos internos que impedem que o governo local impeça o “roubo de recursos”.
Ele fez um apelo para que líderes mundiais reforcem uma “mentalidade mais democrática”. Segundo Gusmão, a percepção do conceito de democracia “ainda falta muito em muitas sociedades”. O líder timorense afirmou ainda que a ONU deve melhorar aproximação às comunidades em processos de paz e segurança.
Quais o senhor diria que foram os pontos mais importantes que surgiram nessa discussão do g7+?
Vamos lá dizer que fizemos uma reflexão, uma análise e, portanto, ficamos satisfeitos por termos alcançado alguns sucessos de alguns países que eram frágeis e agora estão a tentar consolidar as instituições de Estado. É um bocado triste ainda porque em alguns não se conseguiu andar muito para frente. No caso do Congo, sabemos, o Estado é frágil. Não há instituições de Estado. No caso da República Centro Africana nunca mais há o fim do conflito e as forças de paz ali estão há quase três décadas, de forma que são essas dificuldades que os países enfrentam. No Sudão do Sul quando ouvi dizer que iam entrar em conflito, fui até ali, falei com eles, avisei-os para não entrarem, porque senão sofreriam, porque tinham acabado a luta pela independência com o Sudão. Não ouviram.
Então há esses retrocessos em alguns países, o Haiti que nunca mais anda. E no Haiti há já também mais de duas décadas que a missão de paz não faz nada só está lá. Então, a reflexão que fizemos foi manter o mesmo diálogo, continuar a manter o diálogo e exigir um bocado da comunidade internacional para ver se a ajuda melhora, no caso das forças de paz que estão lá sem fazer nada.
Portanto, o grande problema é a aproximação às comunidades, porque as forças de paz em todo, foi já uma experiência também que aconteceu em Timor, levam umas ideias, vão lá e propagam as ideias, então não se aproximam. Não veem que cada país tem os seus próprios problemas, tem os problemas intrínsecos à cultura, à maneira de ser de um país.
Então fizemos um estudo, mas o que depois nós também recolhemos é que mesmo com o sucesso há um problema de escassez de financiamento. Por isso que o secretário-geral das Nações Unidas, quando esteve em Timor, e aqui neste Pacto para o Futuro, fala muito da questão de financiamento. Este sistema financeiro não ajuda nada. Então é isso tudo que temos na nossa análise, para vermos como é que ajudamos esses, como é que ajudamos aqueles, mas está difícil.
Eu posso dizer mesmo que estive na República Centro-Africana. Fui lá três vezes. Na primeira fui, nos entendemos e exigi um bocado para eles acabarem com o conflito. Eles entenderam. Meses depois chamaram-me. Fui para lá, alguns grupos entregaram as armas, houve reconciliação e entregaram as armas. Mas no fim, reparamos, quando eles falavam não conseguia compreender muito bem, mas depois percebemos melhor que como é um país enorme e são diversas etnias, em várias tribos, e é isso que estamos sempre a denunciar: ou países ou suas companhias, vão para lá, dão armas a uma tribo, dão armas para outra e andam a lutar. Andam a lutar para impedir que o governo possa ter uma coisa do tipo de ir lá controlar aquilo que eles estão a roubar. Portanto o mundo está mesmo mal, a Organização das Nações Unidas está mesmo no sentido de que quando se fala de direito internacional é só para alguns, não é para todos.
Eu estive no Ukrainian Peace Summit, fomos lá tentar contribuir para que a Ucrânia adquirisse uma situação de paz, parar com a guerra. Mas não se falou em absoluto, não se falou como é que se podia conseguir a paz. Os países ricos e poderosos só estavam lá para dizer ‘vamos continuar a apoiar com armas, com munições, com dinheiro para comida’. Quer dizer, era mais para falar sobre a guerra. Eu encontrei-me com alguns jornalistas portugueses lá. Eles perguntaram eu disse ‘se é Peace Summit, no mínimo todos os países participantes deveriam tirar uma resolução em que se exigisse que Ucrânia e Rússia se sentassem na mesma mesa para se falar’.
Às vezes a gente quer alcançar essas soluções de paz, mas pelo que a gente conhece desta incapacidade da comunidade internacional de juntar, coordenar e ver, mesmo que não seja a situação de paz, no sentido de um acordo se promulgar por dois ou três anos, no mínimo, se houver um cessar fogo, o povo não sofre.
Agora, o mundo, os países ricos não olham para esta situação de sofrimento do povo. Olham só se estão a derrubar os soldados russos. Portanto, é dentro desta situação toda é que estamos a ver o g7+. Mas o maior problema é a escassez do financiamento.
Na Assembleia Geral deste ano, um dos temas mais mencionados pelos líderes foi a reforma da ONU. Que reformas Timor-Leste defende para que as vozes das nações pequenas não sejam ofuscadas pelos interesses dos Estados mais poderosos?
Eu creio que é um processo difícil, mas no mínimo, defendemos a reforma e vemos só a presença. Mas eu creio que depois, se houver uma comissão para ver aquilo tudo, vai haver muita coisa. Mas no mínimo uma presença do continente africano, uma do continente asiático e da América Latina no Conselho de Segurança, isto é um mínimo.
Não se vai dizer que havendo um membro da África ou um membro da América Latina, aquilo vai mudar já. Eu acredito que vai haver uma comissão que vai detectar mais problemas, mais caminhos. Não é apenas uma representatividade, é a forma de trabalho. Eu creio que vai ser muito difícil, mas não é só isso, na Assembleia Geral também. Repare, eu fui um dos últimos, mas o salão estava quase vazio. Quer dizer, significa que eu venho cá, falo, falo, falo, depois vou embora. Os outros falam e eu quero lá saber?
Isso nas Nações Unidas e sobretudo na Assembleia Geral. Mas a organização das Nações Unidas, não digo que não trabalham, sim trabalham, mas não são muito eficientes na aproximação. Por isso o secretário-geral, António Guterres, quando entrou disse ‘não quero relatório, quero ação’, é nesse sentido. Porque antes nós lidávamos já com isso e percebíamos que chegavam e perguntam aqui, perguntam ali e fazem relatórios assim (grandes). Perguntam a nós e depois fazem relatórios e dizemos sempre ‘o que vem?’ e não vem nada. É preciso dar às Nações Unidas uma capacidade de ser mais credível, porque senão é terrível. É como o secretário-geral disse, o problema do sistema de financiamento, o sistema financeiro não ajuda.
O senhor trouxe uma série de mensagens para a Cúpula do Futuro e para a Assembleia Geral da experiência de Timor Leste. Quais dessas mensagens o senhor considera mais urgentes?
Não posso dizer que aquilo que eu considero é mesmo a realidade que o mundo precisa, mas o mais urgente é incutir em vários países, tanto do g7+ como outros, incutir uma mentalidade mais democrática. Mais democrática no sentido de as pessoas não sentirem ‘estou no poder eu que mando em tudo’ e olharem mais para as pessoas, para o povo.
Eu por acaso hoje de manhã encontrei-me com o ex-presidente da Eslovênia, que faz parte do clube de Madrid, que coopera em termos de motivar as pessoas a compreenderem a democracia, os direitos humanos. E tivemos um encontro bom, no sentido de que a cooperação que vai ter conosco será naqueles países do g7+.
Então alguns líderes estão ali e vão a presidente, vão a governo e depois não querem mais perder, não querem mais sair dali. Este conceito de democracia, esta percepção que ainda falta muito em muitas sociedades. A gente as vezes pensa, quando chega aqui na América, ou na Europa, com digitalização em tudo, pensa que em todos os países há já isso. É nesse sentido que nós sempre dizemos que para se resolver o problema de um país não se deve levar para lá teorias e dizer é isto, é isto e isto, não! Vai saber. Primeiro conhecer aquele povo, conhecer aquela realidade e depois ver como entrar, não é ir lá ensinar, ensinar e ensinar. Então é isso que ainda necessita muito. Isto para mim é a primeira prioridade.
A segunda é o problema mesmo do financiamento. Eu posso contar uma história. Anos atrás, eu não era primeiro-ministro, com o g7+, depois de termos iniciado um bocado a reconciliação ali na República Centro-Africana. Porque andavam grupos, e não é um tipo de país dividido em dois, não, são grupos apoiados ou subsidiados pelas companhias internacionais e andam ali a matar-se uns aos outros só para impedir que o governo, que não tem condições nenhumas, de poder controlá-los. Então eu fui três anos seguidos com a g7+ a explicar a necessidade de começar a pensar em financiar. Porque o nosso lema é ‘sem paz não há desenvolvimento’. Contudo se consegue alcançar paz, sem desenvolvimento não haverá paz. Os intelectuais quando dizem paz em uma terra, um país, querem paz em todo lado.
Não pensam que se começarmos a ter paz aqui, isso vai influenciar outros para alcançarmos uma paz total no país. Tentamos conseguir o que queríamos, tentamos explicar isso, mas ouvíamos ‘não, só depois da paz’. Eu dizia já estamos a conseguir, mas sem desenvolvimento, depois as pessoas começam a dizer ‘todo esse trabalho para a paz, mas a paz não ajuda em nada’.
Então pedimos, porque aconteceu em Timor. No início não havia dinheiro, não tínhamos nada e o Banco Mundial pôs lá um bocado de dinheiro para facilitar créditos. Pequenos créditos para as pessoas começarem a se mexer. Então, como fui para lá, percebi um bocado a realidade ali. Nós pedimos dá um bocado, assim como o Banco Mundial fez a nós. Como fizemos bem quando depois de sermos independentes, isso foi antes de nossa independência, mas depois de sermos independentes, o pouco dinheiro, que já não me lembro o quanto que era, não eram milhões, o pouco dinheiro que era disseram: fica para vocês. E daí criamos o Banco Nacional de Desenvolvimento. Agora estamos a pôr mais dinheiro para créditos. Então lá (na República Centro Africana) tentamos, tentamos, tentamos. O presidente do Banco Mundial também estava lá e nada. Aí tentamos convencer os técnicos, não conseguimos. O Ban Ki-moon (ex secretário-geral da ONU) tinha ido para se encontrar com o presidente do Banco. Mas como o presidente do Banco estava lá em uma discussão em que ele podia compreender melhor as nossas aspirações, os nossos pedidos, mandou dizer ao Ban Ki-moon ‘ainda tenho um encontro, fique na espera’ e só depois de acabar o nosso encontro foi encontrar-se com ele. Mas não conseguimos demover aquela gente. Regressamos. No dia seguinte, fomos lá outra vez e a partir daí nunca mais fomos lá. Encontramos com o presidente e ele disse ‘estou contente por ontem ter percebido as vossas aflições, aquilo que vocês necessitam, as vossas necessidades, mas como não posso mexer e não posso prometer nada, pode me fazer um favor?’. Perguntamos então ao presidente em que poderíamos ajudar. Ele disse: ‘por favor peçam aos países doadores para meter dinheiro aqui que eu posso depois pegar nesse dinheiro e ajudá-los’. Foi uma decepção total. Levantamo-nos, nem nos despedimos e saímos. Portanto, isto é que o secretário-geral, quando falou de sistema, o sistema financeiro, o sistema de financiamento que está horrível, que não existe, que não ajuda.
Agora no discurso, o senhor também mencionou a celebrações dos 25 anos do referendo pela autodeterminação que foi organizado pela ONU. O senhor chamou de um triunfo do sistema internacional. Como que você avalia que a presença e a solidariedade da comunidade internacional fizeram a diferença em Timor-Leste? E como é que o que deu certo em Timor-Leste pode dar certo em outros países?
Depende da situação concreta, no sentido de que nós, em 1983, tivemos um encontro com o comando militar indonésio, eles é que pediram, pensaram que íamos ser derrotados, mas, embora pequenos, mantivemos a resistência. Eles viram que podiam convencer-nos, mas como sabíamos disso, fomos e entregamos um papel a dizer: “Não. Referendo. Não venham iludir-nos com uma paz, porque o problema não é paz. O problema é a nossa independência”. Em 1983, mandamos esse papel ao presidente Suharto, pra ONU, Portugal e Indonésia, dizendo nós temos o direito a isto e aquilo.
Ficamos à espera 16 anos, foi só em 1999. Quando eu disse depende de determinados fatores: Kofi Anand. Foi determinante. Da parte da Indonésia, o Suharto saiu. Uma outra pessoa que determinou também foi Habibe. Depois de Suharto, Habibe ficou ali como um tipo de presidente temporário, transitório. E decidiu. Por isso temos uma ponte em Díli com o nome dele em reconhecimento. Portanto depende também de fatores, é nesse sentido que eu apelei hoje de manhã ao secretário-geral, por favor, pegue neste processo do Sahara como Kofi Anand pegou no nosso. Foi em maio de 1999 a Unamet (Missão das Nações Unidas em Timor-Leste) foi para lá com Ian Martin. Mas em 1992, em 1991 poderia ir a um referendo, mas em 1992 foi adiado. E naquilo tudo (em 1999), os indonésios declararam que a segurança seria da parte deles, que eles tomariam conta da segurança. Era mais no pensamento de que as suas milícias poderiam andar à vontade, ameaçar a população para ir votar pela integração. E começaram a matar. Ian Martin, em junho, foi lá ter comigo. Eu estava na prisão, ele disse ‘Xanana, desculpa, temos que adiar porque conforme princípios da ONU, em processos assim, quando há muita violência e há mortes, não podemos. E nós não temos nenhuma capacidade de dar segurança para a população’. Eu disse ‘Não. Tem que ser, tem que ser’. E eu me lembrava do Sahara. E perguntei ‘quantos já morreram?’. Ele disse ‘mais de mil’. Então eu disse ‘é pouco’. Ele dizia ‘se continuarmos vão morrer 2 mil, 3 mil’. Eu disse ‘é muito pouco. Durante 24 anos, esquecidos pela comunidade internacional, morreram mais de 250 mil timorenses. Agora já para ganhar a guerra, se morrem mil, 2 mil, é muito pouco’. Eu disse olha, em 1991, quando soubemos que o Sahara ia ter referendo, nós decidimos continuar a resistir, porque depois do Sahara seremos nós. Em 1992 vocês cancelaram. Agora em 1999 se cancelarmos vamos ter que esperar pelo Sahara. Agora vê o efeito. Neste ano celebramos os 25 anos de referendo, enquanto o Sahara está a espera há 32 anos. Portanto, é nisto que se revela a incapacidade da ONU, a inoperância sobretudo no pensar, no sentido de existe uma teoria, vão e aplicam a teoria, do tipo de plantar repolhos em areias, ou plantar qualquer outra coisa no lodaçal, de forma que isso tudo é um grande problema. Temos que ajudar as Nações Unidas a contribuírem melhor para esses países em desenvolvimento tentarem crescer, tentarem ter confiança e crescer, senão não dá, não vamos para nenhum lado.