As Liberdades Cristãs, o Totalitarismo e a Tentação
O amigo
Átrida desafiou-me a escrever sobre o problema do Cristianismo e da Liberdade. É claro que muita gente mais capaz já escreveu sobre o assunto e eu, como é costume, tenho vindo a tentar sintetizar essas ideias, as que me parecem mais interessantes, nas coisas que vou por aqui escrevendo. Este é uma síntese, portanto.
A liberdade, ao contrário do que tantos “palonços” de direita e esquerda e declarações de direitos têm vindo a fazer, não tem um sentido político inequívoco e enciclopédico. Esta ocupa vários lugares consoante a tradição de pensamento em que se insere (como tudo neste mundo). Por essa razão aqueles que falam da Liberdade como algo que remonta aos gregos, romanos ou até aos fenícios, têm de conseguir estabelecer ligações não apenas com essas tradições, mas com as próprias tradições dentro dessas culturas que apontaram diferentes sentidos para o termo. A maior parte das considerações sobre a liberdade que emergem no mundo moderno, remontam quase sempre a posicionamentos que já se encontram no Mundo Antigo, reformulados e vestidos de filosofia (quando antes eram argumentos da sofística).
Na Teoria Política Contemporânea existem três grandes tendências para a definição da Liberdade e que correspondem, em traços gerais, à própria fronteira de delimitação dos campos políticos que povoam o panorama da nossa filosofia política. Os dois primeiros, a Liberdade enquanto Autonomia e enquanto Capacidade, são amplamente estudadas nas universidades que possuem programas de filosofia e teoria política e correspondem geralmente a uma interpretação liberal ou socialista, respectivamente, do fenómeno político. Enquanto a primeira se preocupa em determinar a fronteira delimitadora da acção do Estado, a segunda tendência procura encontrar formas do Estado permitir que os indivíduos tenham capacidade para satisfazer os seus desejos. Apesar de serem duas linhas de pensamento distintas, a derrota do socialismo enquanto ideia económica e a rendição do liberalismo político ao progressismo, criou uma unidade nesta tendência, que apesar de teoricamente insalubre e confusa, vai predominando enquanto discurso oficial do “Estado Social”.
A terceira tendência, quase não leccionada nas universidades dessa Europa, mas que ainda possui relevância nos EUA e nalgumas universidades católicas (em que não se inclui a Portuguesa), tem como preocupação os dois elementos de liberdade anteriormente observados, mas tem como principal preocupação a Fonte dos direitos, liberdades e do lugar do Homem na comunidade política. Esta tendência, que politicamente pode ser encaixada no Conservadorismo (no que não é historicista, imobilista, originalista, materialista, pelo menos), corresponde a um conjunto de elementos de reflexão sobre a natureza moral sobre a natureza do Cosmos. A maior preocupação desta forma de entender a Liberdade é a compreensão dos elementos que lhe conferem a sua autoridade, em especial a sua inscrição num conjunto de elementos que explicam uma verdade maior que o “político”.
Primeiro que tudo, esta tendência tem de se inscrever numa tradição de compreensão do Mundo que alcance para além das doutrinas que definem o homem como origem ou limite da compreensão humana, o que implica que o Homem tem, para ser livre, de se inserir numa tradição que não depende da sua vontade. Só através dessa aceitação, da mesma forma que o leitor iniciado aceita a autoridade do alfabeto ou da gramática, pode ele próprio compreender ele próprio qualquer narrativa moral. Sem esse reconhecimento da autoridade, ao contrário do que o liberalismo ou o socialismo pretendem, nenhuma liberdade pode florescer, porque onde o elemento de Poder que institui a Liberdade (quer seja Autonomia, quer Capacidade) provém de uma autoridade humana e da sua Vontade sem esta se encontrar orientada para a Verdade, existe um poder superior de uns homens sobre outros e não uma distribuição funcional entre uns e outros. Os que detém o Poder adquirem um predomínio sobre os seus semelhantes que não é natural (em termos platónico-aristotélicos), uma vez que não têm uma vinculação com o elemento comum (o Bem), pela destruição dos elementos do Bem que constituem a essência da comunidade.
É evidente que dentro desta concepção coabitam vários tipos de liberdade. A liberdade de saber a que é que o Homem tem direito está implícita. Depois de compreendida e reproduzida, a Ordem firma uma concepção moral que, consciente dos limites da sua capacidade (ditada pela natureza deste mundo), dá ao Homem o seu legítimo lugar. Existe liberdade para a aprofundar no sentido de a aproximar da Verdade. Existe até liberdade para a afastar da Verdade, quando tal seja preciso para evitar males maiores. Essa possibilidade, lícita desde que mantida a referência à Fonte, provém da independência do “político” de que o Cristianismo se pode orgulhar e que impede que uma sociedade cristã (no verdadeiro sentido) se torne totalitária (onde o pecado e o crime são uma e a mesma coisa).
A Liberdade liberal e a socialista fundam-se nesse mesmo totalitarismo, consistente no predomínio da comunidade sobre a Verdade (como todas as pessoas que leram John Locke ou Karl Marx sabem), consagrados na Religião da Propriedade ou do Materialismo Histórico que forma o Progresso. A Liberdade Cristã, porém, pugna por uma liberdade que se funda na compreensão. Da mesma forma que só é livre de utilizar um utensílio quem domina a sua prática (constituída por uma tradição de meios e fins, p.ex: a arquitectura, a medicina, o xadrez), esta perspectiva defende que a verdadeira liberdade consiste em compreender o Mundo, para se libertar do erro.
Pode dizer-se que esta imposição é arbitrária. É, então, forçoso que se escolha. Os que propõem uma melhor compreensão e visão do transcendente, não têm hipótese senão erguer uma Nova Religião e assumirem-se como seus sumos-sacerdotes. Os que afirmam que o Bem e o Mal são características humanas, têm de estar conscientes da antiguidade dessa Tentação Primordial, sabendo da inevitabilidade da queda no eterno erro do Homem pelo Homem.
Existe alternativa?
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