"Pernoito neste corpo magro espero a catástrofe Basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia Não…não voltarei a suicidar-me Pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade"
É indiscutível o elemento dominador da obra de Al Berto: a noite e solidão. Se calhar porque tem de procurar o amor contra os ditames sociais. Ou simplesmente porque assim parece acontecer a alguns que são muitos. A solidão na multidão.
A noite, momento de criatividade é também de desassossego, com a exacerbação do silêncio em que gritam os sentimentos.
O espelho uma constante. Por um lado como lembrança da juventude, reflectida no sentimento de perda da inocência e por outro, como um reflexo do presente.
em "Uma existência de papel": Regresso às Histórias Simples, 1984/85
Todos envelhecemos, uns melhor que outros. Espero envelhecer, não bem, mas com dignidade. Que a velhice pelo menos me poupe a tortuosidade das noites. Porque aqui também o mar chama e relembra o que faltou, o que não fiz e o que fiz indevidamente.
há um tom especial que me prende um instante mais ao "quarto de pensão". talvez uma métrica de tempo. passado, presente e futuro misturam-se: o futuro, apesar de ainda não ser, está inevitavelmente antecipado. a dor que o acompanha, da perda, da ausência, da irrecuperabilidade do passado feliz, acompanha esta antecipação do futuro. sofre-se a perda e a ausência desde agora, no instante anterior ao acontecer.
o tal tom que me prende um instante adicional a este poema é talvez a hiper-consciência. É a memória que nos impele o sofrimento?
(...) E se nos calássemos enquanto a memória se esvazia. Está tudo por acontecer. Mesmo o sono, se vier, terá um peso de lume, um sabor a terras mortas e a areias salgadas. Não sei... está tudo ainda por acontecer.
será suficiente para adiar o branco infinito da morte"
Al Berto
de "A Noite Progride Puxada à Sirga": Três Poemas Esquecidos, 1985
(Ao ler este trecho, não posso deixar de recordar as recentes crónicas de ALA sobre o que é ser escritor e o impulso que o acompanha: escritor é TER de escrever)
“hoje, escrever é um acto nocturno. respiro dolorosamente, escrevo sempre deitado ou inclinado sobre a mesa. o silêncio e as sombras deslizam à minha volta. espreitam por cima do ombro para verem o que estou a escrever.”
"Um fio de sémen atava o coração devassado pela salsugem
o corpo separava-se da milenar sombra
imobilizava-se no sono antigo da terra
descia do esquecimento de tudo...navegava
no rumor das águas oxidadas agarrava-se à raiz das espadas
ia de mastro em mastro perscrutando a insónia
abrindo ácidos lumes pelo rosto incerto dalgum mar"
de "Salsugem", 1978/83: Salsugem, 1982
Penso que Al Berto se tornará o meu poeta a revisitar. Se alguns dos seus poemas me são particularmente próximos, outros há que (bem ou mal) me demonstram o pouco que vivi dos sentimentos nele reflectidos.
Alentejo
o Alentejo de Al Berto é o outro: o que já te teve e guarda a tua ausência, o que escuta o rugido do mar.
não é um tanto escandaloso que o Alentejo - a planície sequiosa, queimada de sol, imóvel, seja fracturada, invadida de espuma e conchas e água e gaivotas e o canto do mar? Não é isto um contra-senso?
(das muitas dezenas de vezes que fui ao Alentejo, ao que me lembro apenas numa fui confrontada com o intenso verde da primavera. o verde interminável, que dançava alegremente sob a brisa. a planície de uma cor única: verde. perturbou-me o sono. ainda hoje não sei se acredito, ou se terá sido uma miragem.)
Escreve-me, peço-te, enquanto a tua imagem permanece nítida dentro de mim.
Al Berto
(O que resta de uma Viagem)
8. Carta de Milfontes
se não inventamos nada, se tudo já existe ou por outros foi imaginado, a escrita resume-se a um exercício de memória, nossa ou alheia. não sei se se escreve por vaidade discursiva, se para enganar inseguranças, se para esquecer ou lembrar. nem importa. sinto, contudo, a poesia mais próxima do esquecimento do que da memória. como se a beleza das palavras fosse em si um subterfúgio ao seu conteúdo. a beleza a apagar o conteúdo é uma ideia preversa!, mas tremendamente adequada... Al Berto [Fragmentos de um Diário, 9./1980] refere-se a um esquecimento perfeito:
(...)
o enigma de escrever para me manter vivo
a memória desaguando a pouco e pouco no esquecimento perfeito
"Os animais vêm beber em teus lábios Água púrpura e breves nuvens de açúcar E no instante de um cometa eclode a última flor viva O regresso é uma queda dolorosa de órbita em órbita No entanto Nenhum obstáculo foi suficiente para impedir Este cíclico regresso à terra Nem mesmo o inflexível rigor da morte extraviou Os fascinados rebanhos."
De “Trabalhos do olhar”, 1976/82: Tentativas para um Regresso à Terra, 1980
diz a minha amiga cristina que o "degredo ao sul" é supérfluo. porque não? tenho aqui o livro à minha frente. comprei-o quando se decidiu este mês a Al Berto. Eu, que acidentalmente comprei um segundo exemplar do "horto" e só notei a repetição depois de terminada a leitura, quando tentava arrumar o livro na prateleira dos lidos. as palavras exilam-se, e são sempre novas. talvez o "degredo" não se limite a repetir, talvez transforme com a nova sequência. talvez seja só a minha distracção...
“só o desejo dalguma eternidade despertaria o terno arado mas a vida tropeça nos húmidos órgãos da terra as selvagens flores afligir-te-ão o olhar por isso inventaremos o necessário ciclo do Outono”
De “Trabalhos do olhar”, 1976/82: tentativas para um regresso à terra, 1980
De vez em quando revisitamos o tema. O amor perfeito, que só o é quando interrompido antes de corrompido. Pela rotina, pela realidade. Al Berto não é excepção. Mas mais que enquadrar o amor, definir como tentaram tantos, Al Berto parece subjugar-se a ele.
ignoramos o ardor dos corpos estendidos no orvalho
a beleza da noite desprendendo fogos
o aroma espesso dos frutos...a fecunda alegria ..."
de Salsugem, 1978/83: Rumor dos Fogos, 1983
Porque atribuimos sempre ao passado e ao inatingível a felicidade? Não conseguimos desprender-nos da saudade do bucólico, mas somos incapazes de abandonar o televisor e procurar o verde, por vezes tão perto.
Não me convenço. Jamais trocarei a internet por favas.
“Será feita de aves a primeira sensação da manhã ser-nos-ão concedidos os dons do voo e do sonho permanente juntos descobriremos a fonte do nocturno bosque e a sabedoria do estritamente necessário despojar-nos-emos dos corpos dos objectos acumulados na memória”
De “Trabalhos do olhar”, 1976/82: tentativas para um regresso à terra
"Autores há (nomeadamente Paulo da Costa Domingos) que se referem ao espólio literário de Al Berto como “trans-sexualidade literária”, já que os limites entre prosa e poesia se esbatem."
A noite dos espelhos – Modelos e desvios culturais na poesia de Al Berto Manuel de Freitas Frenesi, 1999
“(…) coexistem na obra de Al Berto, a par de modelos literários propriamente ditos, influências específicas que são irradiadas de domínios artísticos de outra ordem (como a música e as artes plásticas).”
A noite dos espelhos – Modelos e desvios culturais na poesia de Al Berto Manuel de Freitas Frenesi, 1999
“no céu terei sempre um pedaço da lua de açúcar, e uma estrela para iluminar teu rosto de árabe antigo”
De “Trabalho do Olhar”, 1976/82: Mar-de-Leva (sete textos dedicados à vila de Sines), 1976
O Alentejo encontra-se sempre presente na obra de Al Berto, enquadrado em todos os sentidos. A compilação “Degredo do Sul” é supérflua, Alentejo é uma constante nas representações de Al Berto.
imperdível, este trabalho de vídeo sobre um poema de Al Berto, com som do CD disco "Entre nós e as palavras" d' "Os Poetas". Agradecimentos e parabéns à Autora, Maria Antunes.
A escrita é a minha primeira morada de silêncio a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras extensas praias vazias onde o mar nunca chegou deserto onde os dedos murmuram o último crime escrever-te continuamente... areia e mais areia construindo no sangue altíssimas paredes de nada esta paixão pelos objectos que guardaste esta pele-memória exalando não sei que desastre a língua de limos espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos as manhãs chegavam como um gemido estelar e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar outros corpos de salsugem atravessam o silêncio desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo Al Berto O Medo Lisboa, Assírio & Alvim, 1997
“Al Berto é o pseudónimo literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares. Nasceu em Coimbra, a 11 de Janeiro de 1948, e viveu parte da sua infância e adolescência em Sines. Em 1967 saiu de Portugal para residir em Bruxelas durante vários anos. Inicialmente, a sua poesia revelou-se de inspiração surrealista, na linha de Herberto Hélder. Posteriormente, optou por agrupar poesia e prosa, numa escrita-deambulação. Em 1988, recebeu o prémio Pen Club de Poesia pela publicação de O Medo. Este título reuniu num único livro (posteriormente ampliado e reeditado) a obra poética de Al Berto. Faleceu a 13 de Junho de 1997, em Lisboa.”
"A CIDADE E AS SERRAS", de Eça de Queirós (30 de Outubro a 2 de Novembro de 2003)
"OBRA POÉTICA", de Ferreira Gullar (10 a 12 de Novembro de 2003)
"A VOLTA NO PARAFUSO", de Henry James (13 a 16 de Novembro de 2003)
"DESGRAÇA", de J. M. Coetzee (24 a 27 de Novembro de 2003)
"PEQUENO TRATADO SOBRE AS ILUSÕES", de Paulinho Assunção (22 a 28 de Dezembro de 2003)
"O SOM E A FÚRIA", de William Faulkner (8 a 29 de Fevereiro de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. I - Do lado de Swann)", de Marcel Proust (1 a 31 de Março de 2004)
"O COMPLEXO DE PORTNOY", de Philip Roth (1 a 15 de Abril de 2004)
"O TEATRO DE SABBATH", de Philip Roth (16 a 22 de Abril de 2004)
"A MANCHA HUMANA", de Philip Roth (23 de Abril a 1 de Maio de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. II - À Sombra das Raparigas em Flor)", de Marcel Proust (1 a 31 de Maio de 2004)
"A MULHER DE TRINTA ANOS", de Honoré de Balzac (1 a 15 de Junho de 2004)
"A QUEDA DUM ANJO", de Camilo Castelo Branco (19 a 30 de Junho de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. III - O Lado de Guermantes)", de Marcel Proust (1 a 31 de Julho de 2004)
"O LEITOR", de Bernhard Schlink (1 a 31 de Agosto de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. IV - Sodoma e Gomorra)", de Marcel Proust (1 a 30 de Setembro de 2004)
"UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES" e outros, de Clarice Lispector (1 a 31 de Outubro de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. V - A Prisioneira)", de Marcel Proust (1 a 30 de Novembro de 2004)
"ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA", de José Saramago (1 a 21 de Dezembro de 2004)
"ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ", de José Saramago (21 a 31 de Dezembro de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. VI - A Fugitiva)", de Marcel Proust (1 a 31 de Janeiro de 2005)
"A CRIAÇÃO DO MUNDO", de Miguel Torga (1 de Fevereiro a 31 de Março de 2005)
"A GRANDE ARTE", de Rubem Fonseca (1 a 30 de Abril de 2005)
"D. QUIXOTE DE LA MANCHA", de Miguel de Cervantes (de 1 de Maio a 30 de Junho de 2005)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. VII - O Tempo Reencontrado)", de Marcel Proust (1 a 31 de Julho de 2005)
...leitura livre... de leitores amadores (1 a 31 de Agosto de 2005)
UMA SELECÇÃO DE CONTOS LP (1 a 3O de Setembro de 2005)
"À ESPERA NO CENTEIO", de JD Salinger (1 a 31 de Outubro de 2005)(link)
"NOVE CONTOS", de JD Salinger (21 a 29 de Outubro de 2005)(link)
Van Gogh, o suicidado da sociedade; Heliogabalo ou o Anarquista Coroado; Tarahumaras; O Teatro e o seu Duplo, de Antonin Artaud (1 a 30 de Novembro de 2005)
"A SELVA", de Ferreira de Castro (1 a 31 de Dezembro de 2005)
"RICARDO III" e "HAMLET", de William Shakespeare (1 a 31 de Janeiro de 2006)
"SE NUMA NOITE DE INVERNO UM VIAJANTE" e "PALOMAR", de Italo Calvino (1 a 28 de Fevereiro de 2006)
"OTELO" e "MACBETH", de William Shakespeare (1 a 31 de Março de 2006)
"VALE ABRAÃO", de Agustina Bessa-Luis (1 a 30 de Abril de 2006)
"O REI LEAR" e "TEMPESTADE", de William Shakespeare (1 a 31 de Maio de 2006)