CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Primeiro foi a lei das uniões de facto. O venerando devolveu a peça ao parlamento por lhe achar defeito num articulado menor. O parlamento, entediado e sonolento, informou que ia estudar o caso. Muitos católicos rejubilaram, esperançados que o venerando afinal tinha pulso firme e sabia o que queria.
Depois foi a lei do casamento homossexual. O venerando caíu num completo mutismo. Diziam alguns que era silêncio de mau agoiro, mas muitos católicos davam largas à esperança ao verem como o venerando quase beijava o caminho por onde pisava o Papa que não esconde como é irredutível em relação ao casamento homossexual, às uniões de facto, ao aborto, ao preservativo, aos métodos anticoncepcionais.
Regressado o Papa ao Vaticano, o venerando, no desembaraço lampeiro do que popularmente se designa por patrão fora dia santo na loja, promulgou a lei do casamento homossexual. Mas fê-lo de forma a ficar bem no retrato, julgando assim agradar a todos: no final do documento esclareceu, pelo seu punho, que dava o acordo sem concordar. Ficasse bem claro: ele não concordava, mas assinava concordando. Muitos católicos ficaram zangados.
Depois de bastante tagarelar e dormitar, o parlamento devolveu a lei das uniões de facto tendo diluído o tal articulado de menor importância de que o venerando não gostava. O venerando, um ser virtuoso que não tem dúvidas e nunca se engana, promulgou a lei. Mas deixou bem claro, no final do texto, que assinava concordando sem concordar. E ficou contente ao julgar que, mais uma vez, ficava de bem com todos.
É de cabo. De cabo Elísio, personagem de uma revista muito antiga, no Parque Mayer, de que os da minha geração ouviram contar aos mais velhos. O cabo Elísio da revista ficou célebre porque dizia sem se rir: "eu não queria fazer mas fízio, e fízio logicamente falando."
Muitos católicos estão zangados. Não vale a pena levarem esta novela a sério. Candidatos a presidentes há muitos. Escolham outro. Mais enganados não podem ser.
Nos liberi sumus; Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt... [Nós somos livres; nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertaram...]
terça-feira, agosto 24, 2010
terça-feira, agosto 03, 2010
Querido pastel de nata
CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Pois bem, confesso: tenho um declarado (e descarado) fraco pelo pastel de nata, desde de que me conheço por gente.
Anos a fio, o meu pequeno almoço em Lisboa foi uma bica e um pastel de nata. A Belmira do pequeno café de esquina, no Bairro Alto, mal me via surgir na rua, olho aberto, olho fechado, punha logo em cima do balcão o pastel de nata ainda quentinho e uma bica a escaldar. Eu acordava e punha-me de bem com o mundo. E subia ligeira aquele pedacinho da Rua do Século que, raspando a porta do SNOB , praça forte de muitos jornalistas, ia desembocar no Príncipe Real. Atravessava a mítica praça onde o coração de uma avó minha parou de repente e onde, muito de manhãzinha, o Prof. Agostinho da Silva ia dar de comer aos pombos e uns dedos de conversa aos operários e varinas que começavam a faina diária. Uma vez ou outra encontrava a minha colega Maria Antónia Palla que levava pela mão o filho à escola, um rapazinho de óculos e calções que hoje é presidente da Câmara de Lisboa.
Ao fim da tarde, como quem cumpre uma promessa, desaguava no Rossio, subia a Rua do Carmo, comia regalada um pastel de nata ao balcão da mercearia Martins & Costa que o incêndio levou, subia a Rua Garrett, metia o nariz na Bertrand, atravessava a rua e parava na livraria Sá da Costa, à porta da qual se encostava o grupo de boémios capitaneado pelo cartoonist José de Lemos, do Diário Popular, e seguia para a bica na Brasileira, naquela mesa onde brilhava Tomaz de Figueiredo, Abel Manta e Jorge Barradas, às vezes visitada por Almada Negreiros e José Régio, apimentada por Jacob Levy, o banqueiro que foi um dos patrões de Fernando Pessoa, e por dois médicos judeus que nos contavam histórias de morrer a rir, o Benoliel e o Ruha. Depois de farta cavaqueira, subia com vários deles para outro lugar mítico, o restaurante Rina, no coração do Bairro Alto. E aí, entre gente dos jornais, da rádio, da TV, do fado, do teatro, das letras e da noite, jantava-se e estava-se até às tantas. Quantas vezes eu não pedia pastel de nata para sobremesa! Bons tempos em que, pele e osso, cheia de saúde, eu não tinha de me escravizar a dietas...
Quando tive de me expatriar, há 27 anos, Toronto tinha muito poucas esplanadas e nenhum café com bica à maneira quanto mais pastel de nata. O que isso me custou! Mas poucos anos depois houve uma viragem e hoje temos vários cafés e pastelarias portuguesas, com toda a nossa esplêndida doçaria . Deus seja louvado! E já o castiço Saint Lawrence Market, considerado um dos dez mais bonitos do mundo, vende pastéis de nata em três bancadas: uma portuguesa, do meu amigo Eugénio de Viana do Castelo, outra de gregos e uma de gente do leste da Europa. Vendem-se todos, todos os dias. Caíram no goto aos canadianos.
E porque eu recebo sempre mais do que mereço, eis que me vêm notícias da Expo de Xangai: os pastéis de nata venderam-se por largas dezenas de milhar e fizeram furor entre os chineses.
Meu querido pastel de nata, tão loiro, tão bronzeado, tão tímido e pequeno, és o melhor embaixador de Portugal. Bem dizia o Prof. Agostinho da Silva, visionário da Pátria a vir, quando aconselhava a que nos deixássemos de missões comerciais caríssimas e abríssemos tasquinhas pelo mundo fora, à conquista do mundo pelo paladar. O tempo veio a demonstrar que, por esse processo, é tiro e queda.
por Fernanda Leitão
Pois bem, confesso: tenho um declarado (e descarado) fraco pelo pastel de nata, desde de que me conheço por gente.
Anos a fio, o meu pequeno almoço em Lisboa foi uma bica e um pastel de nata. A Belmira do pequeno café de esquina, no Bairro Alto, mal me via surgir na rua, olho aberto, olho fechado, punha logo em cima do balcão o pastel de nata ainda quentinho e uma bica a escaldar. Eu acordava e punha-me de bem com o mundo. E subia ligeira aquele pedacinho da Rua do Século que, raspando a porta do SNOB , praça forte de muitos jornalistas, ia desembocar no Príncipe Real. Atravessava a mítica praça onde o coração de uma avó minha parou de repente e onde, muito de manhãzinha, o Prof. Agostinho da Silva ia dar de comer aos pombos e uns dedos de conversa aos operários e varinas que começavam a faina diária. Uma vez ou outra encontrava a minha colega Maria Antónia Palla que levava pela mão o filho à escola, um rapazinho de óculos e calções que hoje é presidente da Câmara de Lisboa.
Ao fim da tarde, como quem cumpre uma promessa, desaguava no Rossio, subia a Rua do Carmo, comia regalada um pastel de nata ao balcão da mercearia Martins & Costa que o incêndio levou, subia a Rua Garrett, metia o nariz na Bertrand, atravessava a rua e parava na livraria Sá da Costa, à porta da qual se encostava o grupo de boémios capitaneado pelo cartoonist José de Lemos, do Diário Popular, e seguia para a bica na Brasileira, naquela mesa onde brilhava Tomaz de Figueiredo, Abel Manta e Jorge Barradas, às vezes visitada por Almada Negreiros e José Régio, apimentada por Jacob Levy, o banqueiro que foi um dos patrões de Fernando Pessoa, e por dois médicos judeus que nos contavam histórias de morrer a rir, o Benoliel e o Ruha. Depois de farta cavaqueira, subia com vários deles para outro lugar mítico, o restaurante Rina, no coração do Bairro Alto. E aí, entre gente dos jornais, da rádio, da TV, do fado, do teatro, das letras e da noite, jantava-se e estava-se até às tantas. Quantas vezes eu não pedia pastel de nata para sobremesa! Bons tempos em que, pele e osso, cheia de saúde, eu não tinha de me escravizar a dietas...
Quando tive de me expatriar, há 27 anos, Toronto tinha muito poucas esplanadas e nenhum café com bica à maneira quanto mais pastel de nata. O que isso me custou! Mas poucos anos depois houve uma viragem e hoje temos vários cafés e pastelarias portuguesas, com toda a nossa esplêndida doçaria . Deus seja louvado! E já o castiço Saint Lawrence Market, considerado um dos dez mais bonitos do mundo, vende pastéis de nata em três bancadas: uma portuguesa, do meu amigo Eugénio de Viana do Castelo, outra de gregos e uma de gente do leste da Europa. Vendem-se todos, todos os dias. Caíram no goto aos canadianos.
E porque eu recebo sempre mais do que mereço, eis que me vêm notícias da Expo de Xangai: os pastéis de nata venderam-se por largas dezenas de milhar e fizeram furor entre os chineses.
Meu querido pastel de nata, tão loiro, tão bronzeado, tão tímido e pequeno, és o melhor embaixador de Portugal. Bem dizia o Prof. Agostinho da Silva, visionário da Pátria a vir, quando aconselhava a que nos deixássemos de missões comerciais caríssimas e abríssemos tasquinhas pelo mundo fora, à conquista do mundo pelo paladar. O tempo veio a demonstrar que, por esse processo, é tiro e queda.
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