FLUSSER, Vilem.O.problema - Do.negro - Da.negritude.1966

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O Problema do Negro: Da Negritude Gor Bapirs Hh Da Nejrtuie #704766 © pRETEXTO déste artigo é 0 primeiro festival mundial das artes negras, rea- lizado em Dacar no més de abril do pre- sente ano. © primeiro principio geral do festi- val era éste: © Festival Mundial das Artes Negras est aberto (e também reservado), aoa artistas hhegres ou de origem negra, ¢ ds suas obras. Como a sua organizacio se revestiu de uma forma nacional, participaram dle os paises africanos tidos como “ne gros”, e aquéles pafses americanos que possuem populacio negra. Foram expos- tas obras de arte de autores negros. Executaram-se representagées teatrais, dangas, projegdes cinematograficas ¢ concertos cujos autores e/ou executan- tes eram negros. Especialistas discuti- ram a cultura negra. Dacar procurou transformar-se em foco do mundo negro. O Brasil (um dos paises de maior po- pulagdo negra do mundo) estéve repre- sentado em grande parte do programa. Esta a cena que serve de pretexto ao presente artigo. Algo em nés rebela-se quando ouvi- ‘mos o térmo “negro”, £ um térmo peri- goso, e deve ser pronunciado, a meu ver, com o méiximo cuidado e em contextos bem definidos. A razdo é a seguinte: O homem é um ser parcialmente determi- nado, e parcialmente livre. A dignidade do homem enquanto existéncia reside na sua rebeliao contra aquilo que o deter- mina. © homem 6 um ser que procura negar, sempre de novo, as condicdes que o determinam. £ isto que pretendemos 29 VILEM FLUSSER quando dizemos que o homem existe. As condigdes determinantes, definidoras e portanto limitadoras do homem sao as barreiras degradantes contra as quais, © homem se lanca em sua procura pro- metéica e sempre frustrada da liber- dade. # dbvio que nao podemos negar 0 fato que somos séres parcialmente determi- nados e pareialmente definiveis. Se mantivermos em mente que téda tenta- tiva de definir 0 homem é também ten- tativa de degradé-o, poderemos recor- rer a definiedes como armas na luta pela dignidade humana, Verifiearemos que essas defiriigdes se dio em duas cama- das de realidade. O homem pode ser de- finido na camada da “natureza”, e na camada da “cultura”, 0 homem & um ser determinado pela natureza ¢ pela cultura. Diseutirei logo mais a dificul- dade que temos em distinguir nitida- mente entre as duas camadas. Mas em primeira tomada de consciéncia da nos- sa situagio podemos distinguir entre sentengas que definem o homem como ser que consiste de tantos quilos de gua, e sentencas que definem.o homem como ser que assiste radionovelas. O térmo “negro” é plenamente significati- vo apenas no contexto do primeiro tipo de sentencas. ‘Tédas as definigdes degradam 0 ho- mem, © homem é degradado como ser condicionado pela agua e como ser con- dicionado pela radionovela. Mas no pri- meiro caso a degradacdo é mais eviden- te. A natureza é uma condi¢ao mais de- 30 gradante que a cultura, porque tende a me coisifiear mais radiealmente, Por is- to me sinto mais degradado, mais sufo. cado em minha dignidade de existéncia, se me definirem como “corpo”, ou como “mamifero”, ou como “negro”, que se me definirem come “burgués”, ou como “bilgaro", ou como “sapateiro”. Embo- ra resista a tOda tentativa de explicar ‘as minhas ages e meus pensamentos om base do meu condicionamento, rebelo- ‘me mais contra as explicagées que par- tem da natureza. 8 mais penoso admitir que fago 0 que faco porque sou mami- fero, do que admitir que fago 0 que faco Porque sou luterano. Isto porque a cule tara é uma determinacio menos tird nica (pelo menos & primeira vista). Posso imaginar que escothi ser luterano (embora isto seja provavelmente ilusio minha), mas ndo posso imaginar sequer que escolhi ser mamifero e nio peixe. Por isso vivencio explicacées como a marxista como ndusea menor que ex- plicacdes como a nazista. 0 térmo “negro” define o homem no nivel biolégico, portanto no nivel da na- tureza. Dé-se ao mesmo afvel ontolégico, Ro qual se dio as explicaedes nazistas. Devemos admitir que o homem é um ser parcialmente determinado biologicamen- te, e que portanto so parcialmente sig- hificativas as definicdes do homem que 9 discurso da biologia nos fornece. Pro- curarei mostrar que o térmo “negro” é um térmo impreciso, superado pelo es- tagio atual da biologia, e deve ser aban- donado. A Encyclopaedia Britannica define como “negréide” téda populacio do hemisfério oriental entre 2 Senegam- bia e as ilhas Fiji. Essa populacio apre- senta certas caracteristieas comuns que permitem a classificacio proposta. “Ne- gros” no sentido estrito do térmo sio os habitantes da Africa ao sul do Saara © ao norte da uma linha fluida que vai Vilém Flusser do Gélfo de Biafra até a desembocadura do Tana. As populaedes ao sui dessa li- nha (os Bantus, Bushmen 2 Hot tots) siio racas mistas. Os sentido vestrito de térmo (os sa ses) apresentam determinados que os distinguem de outvas racas. Ale guns désses tracos, como 0 promnatis- mo, lembram tracos antropéides, outros, come 0 carter dos cabelos, representam um estigio “evolutivo” superior ao dos brancos. Se quisermos abusar do dar- winismo (dessa teoria parcialmente su- perada), em contextos valoratives, de- vemos concluir que os negros sfo sob certos aspectos menos evoluides e sob outros mais evoluidos que os brancos. Mas € dbvio que tal valorizacdo ¢ im- pertinente, Quanto & capacidade mental dos negros (admitindo que sabemos 0 gue pretendemos por “capacidade men- tal”), téda tentativa de medi-la é vicia- da pelo Zato de serem os testes progra- mados por brancos. Bsse tipo quanti- ficante de antropoiogia, repugnante pela Sua estrutura mesma, resulta em pura conversa fiada, Os tragos caractevisticos do negro so abstragées feitas pelos observadores Resultaram de indugdes feitas a partir de amostras individuais escolhidas. Tér- ‘mos como “prognatismo” so térmos teérieos, © portanto é tedrico também 0 térmo “negro”. E faz parte de uma teo- la que ndo 6 “boa”. Nunca encontra- mos todos os tragos caracterisicos num individuo concreto. Neste sentido nin- guém 6 negro, Entre os sudaneses sio encontrados tracos hamiticos, semiticos. caucasianos, e outros. Inversamente, de- terminados tracos negros podem ser en- contrados em tida a populagio da Terra. Os chamados “negros” do hemisfério ocidental so descendentes, em parte, dos povos negros e negréides da Afri- ca, e em parte muito maior de povos © Protlema do Negro: Da Negritude hamiticos e semiticos da Africa, dos indigenas americanos, e de todos 0 po- vos eurcpeus. Neste sentido todo ho- mem é negro. Em suma: o t8rmo “ne- gro” é um térmo de uma teoria que procura explicar determinados fend- menos observados na espécie biol gica homo sapiens, mas que no é extremamente eficiente, Com efcito, ou- ‘tras teorias estio sendo formuladas. Se portanto admitimos que homem é um ser parcialmente determinado pela bio- logia (embora o fagamos com o intuito de nos rebelar contra essa determina- Go), podemos “jogar fora” a teoria que emprega 0 térmo “negro”. Infelizmente devemos admitir que a distingio entre “natureza” e “cultura” 6 dificil, e desafia tédas as ontologias. A natureza é 0 conjunto das coisas niio produzidas pelo homem, A cultura é 0 conjunto das coisas que foram arranea- das pelo homem & natureza e manipula das, Mas ndo continuam sendo “natu- rais” em certo sentido? Nao continua sendo madeira a mesa? E 0 homem que manipula as coisas e produz cultura, néo é éle um ser “natural” em certo sentido? Nao produz éle, em certo senti- do, a mesa como a ave produz 0 ninho? Os limites entre natureza e cultura se borram, e mais atualmente que antiga- mente. # leite desidratado um alimento natural ou produto de cultura? Qual o aspecto natural, ¢ qual o cultural de uma représa? E qual a diferenca onto- Togica entre a Lua como plataforma de véos interplanetarios e um sputnil? Dada esta dificuldade, tendem os dis- cursos, cujo assunto ¢ a natureza, a invadir 0 terreno da cultura e viee- versa. Surgem expressies hibridas ¢ suspeitas como “arté negra”. Trata-se de confusio semintica, bem conheci- da nossa pelas explicactes nazistas. © nazismo era, no fundo, uma confu- 3t sdo entre natureza ¢ cultura e resul- tou em deturpacio de ambas, Animali- zava a cultura e teenicalizava a natu- reza, 0 funciondrio nazista era uma fera mecanizada. A expressio “arte negra” move-se no mesmo terreno, Trata-se, dbviamente, de uma inversio dos valé- res racistas, mas aceita as coordenadas do racismo, Podemos vivenciar ésse fa- to, se invertermos os térmos. Imagine- mos um festival, eujo primeiro princi pio geral seria éste: © Festival Mundiat das Artes Branca est. aberto (e também reservado), sos artistas braneos ou de origem branca, o ks suas obras. Dito isto, procuremos justificar a ex- pressio “arte negra”, j4 que dbviamen- te nao & insignificativa. Existe uma sociedade (ou varias so- ciedades) que habita a Africa 20 sul do Sara, Bioldgicamente essa socieda- de pode ser explicada, por uma teoria no muito “boa”, como negra. Essa s0- ciedade manipolava e manipula a na- tureza, isto 6: produz cultura. As coisas da cultura que sio assim produzidas desvendam, quando vivenciadas, e mais ainda quando analisadas, um determina. do clima existencial e uma determinada estrutura, Com efeito: desvendam va- ios climas e varias estruturas. Ao sul do Saara ha mais de uma cultura. 0 clima e a estrutura das coisas da cul- tura sdo sintomas manifestos da manei- va como uma determinada sociedade se encontra a si mesma na situacio na qual foi lancada, Téda sociedade manipula a natureza de acdrdo com determinados modelos, que so as formas pelas quais se encontra a si mesma. Bsses modelos so geralmente chamados “mitos”. To- da cultura € realizagio de modelos, de mites, pela manipulagéo de coisas da natureza por uma sociedade. As cultu- ras a0 sul do Soara sio realizagdes de

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