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Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia 
que a fuga era possível, pelas estradas de giestas em 
direção ao mar. Dorme, e consente que o meu coração 
escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita 
de pontes atravessadas, kms noturnos e segundos de asfalto. 


 Al Berto, in "Dispersos"





É por Ti que Vivo

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto'




        Apetece cantar, mas ninguém canta.
        Apetece chorar, mas ninguém chora.
        Um fantasma levanta
        A mão do medo sobre a nossa hora.

        Apetece gritar, mas ninguém grita.
        Apetece fugir, mas ninguém foge.
        Um fantasma limita
        Todo o futuro a este dia de hoje.

        Apetece morrer, mas ninguém morre.
        Apetece matar, mas ninguém mata.
        Um fantasma percorre
        Os motins onde a alma se arrebata.

        Oh! maldição do tempo em que vivemos,
        Sepultura de grades cinzeladas,
        Que deixam ver a vida que não temos
        E as angústias paradas!

        Miguel Torga





      Adoro esse teu ar quando me tocas.
      Começas por ficar transfigurada
      para, depois de unir as nossas bocas,
      te tornares uma fera não domada.

      Mordes-me o peito, os ombros, o pescoço.
      As tuas coxas nas minhas mãos são abraço
      tão forte e perigoso que não posso
      responder a seguir pelo que faço.

      Enlouqueço. Também sou uma fera
      há dias sem comer, à tua espera
      pra poder devorar-te e saciar-me.

      A luta assim é própria de quem ama.
      Se eu tiver de morrer, seja na cama
      a vir-me nos teus braços e a passar-me.

      Joaquim Pessoa





        Sei que seria possível construir o mundo justo
        As cidades poderiam ser claras e lavadas
        Pelo canto dos espaços e das fontes
        O céu o mar e a terra estão prontos
        A saciar a nossa fome do terrestre
        A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
        Cada dia a cada um a liberdade e o reino
        — Na concha na flor no homem e no fruto
        Se nada adoecer a própria forma é justa
        E no todo se integra como palavra em verso
        Sei que seria possível construir a forma justa
        De uma cidade humana que fosse
        Fiel à perfeição do universo

        Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
        E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

        Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"
         
        ...a propósito do Dia Mundial do Livro





      Faz-se luz pelo processo
      de eliminação de sombras
      Ora as sombras existem
      as sombras têm exaustiva vida própria
      não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
      intensamente amantes loucamente amadas
      e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
      que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

      Por outro lado a sombra dita a luz
      não ilumina realmente os objectos
      os objectos vivem às escuras
      numa perpétua aurora surrealista
      com a qual não podemos contactar
      senão como amantes
      de olhos fechados
      e lâmpadas nos dedos e na boca

      Mário Cesariny, in "Pena Capital"


          Não
          O Cristo não morreu
          Não pode ter morrido
          Há dois mil anos
          Como contam.

          Ontem ainda
          Ele foi assassinado
          Em cenário
          Latino-americano
          Por actores nacionais
          E estrangeiros.

          Hoje mesmo
          Ele é assassinado
          Em versão internacional
          Para uso mundial
          Exportada em caixotes
          Bem embalados.

          Amanhã com certeza
          Ele será assassinado
          Na minha ilha
          Na minha pequena - céus!
          Como se fosse possível
          Obrigar o sol a engolir a lua

          Para a cuspir
          Na latrina como um escarro
          Impertinente
          Drenar o leite
          Nas mamas da fêmea
          Cortar a água com a faca

          De cortar o pão
          Meter na prisão
          A palavra dos poetas
          Secar o mar
          Impedir as estrelas
          De dormitar no seio do universo.

          Não
          O Cristo não morreu
          Não pode ter morrido
          Há dois mil anos
          Como contam.

          Se o assassinaram
          Há dois mil anos
          Como contam
          Como continuar a assassiná-lo
          Em toda parte e no mesmo sítio
          Dois mil anos depois de morto?

          Quem é que nunca acaba de morrer
          Que morto
          Em toda a parte
          Em todos os dias
          A cada hora
          A cada instante

          Renascer
          Em toda parte
          Todos os dias
          A cada hora
          A cada instante
          Barbado ou barbeado

          Com outra ou a mesma cor
          Segundo o país
          O gosto
          A moda
          A época
          As circunstâncias?

          Não
          O Cristo não morreu
          Não pode ter morrido
          Há dois mil anos
          Como contam.

          Crucificado
          Linchado
          Enforcado
          Guilhotinado
          Eletrocutado
          Fuzilado

          Segundo o país
          O gosto
          A moda
          A época
          As circunstâncias
          O cristo não morreu.

          Mário Fonseca – poeta

          Fotografia de Dariusz Klimczak



creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,

creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,

creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. amém.

Natália Correia


Em homenagem a todos os poetas do mundo, esses cantadores da alma das coisas e dos homens.





O Amor é...

O amor é o início. O amor é o meio. O amor é o fim. O amor faz-te pensar, faz-te sofrer, faz-te agarrar o tempo, faz-te esquecer o tempo. O amor obriga-te a escolher, a separar, a rejeitar. O amor castiga-te. O amor compensa-te. O amor é um prémio e um castigo. O amor fere-te, o amor salva-te, o amor é um farol e um naufrágio. O amor é alegria. O amor é tristeza. É ciúme, orgasmo, êxtase. O nós, o outro, a ciência da vida.

O amor é um pássaro. Uma armadilha. Uma fraqueza e uma força.

O amor é uma inquietação, uma esperança, uma certeza, uma dúvida. O amor dá-te asas, o amor derruba-te, o amor assusta-te, o amor promete-te, o amor vinga-te, o amor faz-te feliz.

O amor é um caos, o amor é uma ordem. O amor é um mágico. E um palhaço. E uma criança. O amor é um prisioneiro. E um guarda.

Uma sentença. O amor é um guerrilheiro. O amor comanda-te. O amor ordena-te. O amor rouba-te. O amor mata-te.

O amor lembra-te. O amor esquece-te. O amor respira-te. O amor sufoca-te. O amor é um sucesso. E um fracasso. Uma obsessão. Uma doença. O rasto de um cometa. Um buraco negro. Uma estrela. Um dia azul. Um dia de paz.

O amor é um pobre. Um pedinte. O amor é um rico. Um hipócrita, um santo. Um herói e um débil. O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um sorriso.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'




Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades

Sophia de Mello Breyner Andresen

Fotografia de Leszek Bujnowski




Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras


Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada


De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse


Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"





"Sukutam
Sima sol ta poi na kalmisera mar
Tartaruga ta poi na koba-l ria
Nha Olhar ta poi na fundo di bus odjus
Pa desova um sentimento grandi…"

Eneida Nelly





é sublime
alegria refletida
em momentos de amor

é mistério
o destino repentino
de se dar e sentir dor

é criança
borboleta de um planeta
tão distante, sem calor

é poesia
palavras que se abraçam
alegria, destino, borboleta
e o sabor"

Ivan Petrovitch




Música John Surman - Edges Of Illusion

[Imagem de coreografia de Pina Bausch]


Nota: se puderem, ouçam até ao fim. Lendo o poema e olhando para a imagem, fica ainda melhor. Não há nada mais sublime que a mistura de música, poesia e movimento. Um post todo ele dedicado ao bailarino e coreógrafo Tó Tavares, uma das almas mais generosas que já conheci na vida.






“Há uma saudade da vida, porém tão perdida e vaga, e há a espera, a infinita espera, a espera quase presença, da mão de puro mistério, que tomará minha mão e me levará sonhando para além deste silêncio, para além desta aflição”

Tasso da Silveira, “Fronteira” escritor curitibano e ex-deputado estadual do Paraná que dá nome à escola de Realengo palco da terrível tragédia.





Sempre gostei de estar perante objectos artísticos inovadores, quer como espectador quer num outro papel mais interventor. É o caso da obra poética de Filinto Elísio, particularmente o livro que vai lançar no próximo mês, que inova e surpreende, a começar pelo título, “Me_xendo no baú. Vasculhando o Ú”. Tive o privilégio de participar na gravação do CD que acompanhará o livro, juntamente com Nancy Vieira. 

Cada poema representou para mim um tremendo desafio, quer pela complexidade com que estão elaborados como pelo facto de ter a plena consciência de estar a dar voz a um objecto poético inaudito e novo dentro do panorama da poesia em língua portuguesa. Um orgulho.

No próximo mês de Abril acredito que muitos outros poderão se deliciar com os resultados de uma obra poética, cuja edição vai deixar marcas indeléveis. 




        Um beijo em lábios é que se demora e tremem no abrir-se a dentes línguas tão penetrantes quanto línguas podem. Mais beijo é mais. É boca aberta hiante para de encher-se ao que se mova nela. É dentes se apertando delicados. É língua que na boca se agitando irá de um corpo inteiro descobrir o gosto e sobretudo o que se oculta em sombras e nos recantos em cabelos vive. É beijo tudo o que de lábios seja quanto de lábios se deseja. 
          Imagem do belo filme My Blueberry Nights



    Preso à minha classe e a algumas roupas,
    vou de branco pela rua cinzenta.
    Melancolias, mercadorias espreitam-me.
    Devo seguir até o enjôo?
    Posso, sem armas, revoltar-me?

    Olhos sujos no relógio da torre:
    não, o tempo não chegou de completa justiça.
    O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

    O tempo pobre, o poeta pobre
    fundem-se no mesmo impasse.

    Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
    Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
    O sol consola os doentes e não os renova.
    As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
    Uma flor nasceu na rua!

    Vomitar esse tédio sobre a cidade.
    Quarenta anos e nenhum problema
    resolvido, sequer colocado.
    Nenhuma carta escrita nem recebida.
    Todos os homens voltam para casa.
    Estão menos livres mas levam jornais
    e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

    Crimes da terra, como perdoá-los?
    Tomei parte em muitos, outros escondi.
    Alguns achei belos, foram publicados.
    Crimes suaves, que ajudam a viver.
    Ração diária de erro, distribuída em casa.
    Os ferozes padeiros do mal.
    Os ferozes leiteiros do mal.

    Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
    Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
    Porém meu ódio é o melhor de mim.
    Com ele me salvo
    e dou a poucos uma esperança mínima.

    Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
    Uma flor ainda desbotada
    Ilude a polícia, rompe o asfalto.
    Façam completo silêncio, paralisem os negócios
    garanto que uma flor nasceu.

    Sua cor não se percebe.
    Suas pétalas não se abrem.
    Seu nome não está nos livros.
    É feia. Mas é realmente uma flor.

    Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
    e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
    Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
    Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
    É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


    Carlos Drummond de Andrade in A Rosa do Povo


    [Que poema justo para os tempos que correm! Que palavras certeiras!]





    Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor de arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido (mal vivido ou talvez sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?). Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar de arrependido pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto da esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

    Carlos Drummond de Andrade







          São feitas de lágrimas e de sangue e ainda de outras coisas. O coração bate à esquerda. 
            Umberto Saba, in "Poesia" (fotografia de Storm Thorgerson)



      Os Amantes de Novembro

      Ruas e ruas dos amantes
      Sem um quarto para o amor
      Amantes são sempre extravagantes
      E ao frio também faz calor

      Pobres amantes escorraçados
      Dum tempo sem amor nenhum
      Coitados tão engalfinhados
      Que sendo dois parecem um

      De pé imóveis transportados
      Como uma estátua erguida num
      Jardim votado ao abandono
      De amor juncado e de outono.


      Alexandre O'Neill 






      [Estava a ver que nunca mais chegava, o mês de Novembro!]