Quando se vem morar para um novo território, mal haja tempo, é crucial, para perceber onde estamos, começar por estudar a geologia, a geomorfologia, e em geral a geografia, a ecologia, enfim, as bases físicas e ambientais desse território, as grandes linhas estruturais que, desde muito antes da presença humana, foram criando a fisicalidade da região à qual o ser humano depois se adaptou, e a qual este foi adaptando e transformando à medida das suas possibilidades técnicas e dos interesses dos vários grupos em presença em cada época.
Não se trata, claro, de abordar algo de atemporal, mas de uma realidade em contínua transformação…por vezes impercetível à nossa escala…ao longo de séculos e de milénios…e, mesmo, de milhões de anos, até hoje. Uma história das condições que permitiram a fixação humana em certos locais e, depois, sendo eles nós importantes de comunicação, permitiram a emergência da urbanidade compreendida como algo assente nos seus gérmenes mais longínquos.
A região a que preferencialmente me refiro aqui é apenas, por convenção, uma pequena parte da Orla Ocidental de Portugal, a zona setentrional da área metropolitana de Lisboa, ou seja, a cidade propriamente dita e a sua periferia envolvente (norte, oeste e noroeste…), ambas hoje indistinguíveis uma da outra, com sinergias cada vez mais acentuadas ao longo do tempo, como toda a gente sabe. Refiro-me portanto sobretudo a concelhos meridionais do distrito de Lisboa, ou da Península de Lisboa, se se quiser.
Lisboa instalou-se em épocas remotas num nicho muito propício do Baixo Tejo, e com o decorrer da história aí se foi constituindo um complexo portuário que envolvia uma grande extensão de água terra adentro, até onde o rio era navegável por barcos de mais ou menos razoável porte, e nesse complexo estavam incluídos, obviamente, vários tributários do grande rio, como por exemplo o Trancão, na sua margem direita, rio este ao qual vêm por sua vez desaguar vários cursos de água menores, da área a norte da cidade.
Aquele sistema de “palafitas” que sobrevive, também já como atração turística, mais para sul, na Carrasqueira, no estuário do Sado, perto da Comporta, deve ter existido em muitos vales destes rios, Tejo e tributários: ancoradouros com grandes estacas de madeira espetadas no lodo para prender os barcos e, também, através de passadiços rudimentares de tábuas nelas apoiados, permitir a carga e descarga das embarcações. O arqueólogo está habituado a povoar as ausências de objetos e de vida, quando se lhe torna evidente que os locais hoje por vezes quase ermos já fervilharam de atividade no passado… e isso permite-lhe uma leitura diferente das paisagens.
Vivendo em Loures, eu estou à beira de um destes cursos de água que afluem para a bacia do Trancão, e por conseguinte perante uma várzea imensa, riquíssima do ponto de vista ecológico e agrícola, e é neste contexto que me procuro subjetivar, tendo nascido em Lisboa, frequentando essa cidade amiúde, mas precisando de me pensar na mais ampla geografia que referi. No fundo, para conectar este presente (descentrado e hoje urbanisticamente caótico) e o centro mais harmonioso (onde nasci e vivi… agora cada vez mais sujeito à gentrificação e só acessível a ricos e/ou estrangeiros).
Saber onde agora estou a morar, onde posso relacionar-me diretamente com pessoas, criar novas convivialidades, e sentar-me ao tampo de uma mesa serenamente a escrever, é existencialmente essencial para mim. Não sou indiferente ao território que piso, à profundidade do tempo que nele dorme, à história sobre a qual caminho, aos horizontes que vislumbro, aos acessos à grande cidade que amo e a qual, durante tanto tempo, me foi praticamente inacessível devido aos meus afazeres profissionais. Mas estar descentrado tem as suas vantagens também! Fruto “proibido” tem melhor sabor…
É para me posicionar neste novo contexto, neste ponto de mira sobre as minhas raízes, que, ser da palavra, falo e escrevo; algo muito mais vital do que uma simples comunicação: é sempre acerca da nossa vida que dissertamos, por interposto assunto, real ou imaginado: esse pretexto, esse pré-texto das nossas fantasias. Para a zona concreta onde vivo, há inúmeros trabalhos que poderão servir-me de apoio quando sobre ela escrever; por exemplo, entre muitos, o artigo do Prof. José Luís Zêzere (catedrático de Geografia da UL) intitulado “As costeiras a norte de Lisboa: evolução quaternária e dinâmica atual das vertentes” (revista Finisterra, vol. XXVI, 1991, pp, 27-58), constituindo a compactação da sua tese de mestrado em Geografia Física e Regional, de 1988, e disponível em linha, entre uma plêiade imensa de outras fontes..
Porque são as costeiras da linha Odivelas-Vialonga que avisto de minha casa, quando venho à janela, e olho para o lado da várzea, vendo-o ocupado em parte, lamentavelmente, pela urbanização do Infantado, uma aberração urbanística, em expansão em plena várzea, que nunca devia ter sido licenciada. E no alto das costeiras, as casas de origem clandestina, algumas em risco de queda… enfim, o “poder do betão” para a classe média em sítios qualificados, por um lado, e por outro a pressão de ter um teto para os mais pobres… mesmo em condições bem pouco aprazíveis… e recobrindo tudo isto a irracionalidade endémica bem conhecida, e preponderante, no mundo em que vivemos, alimentado pelo lucro.
Mas de momento não quero circunscrever-me a essa zona, que só me serve de embraiagem para a escrita, e antes primeiro que tudo olhar mais amplamente, qual pássaro dotado de visão panorâmica, para um mapa do estuário do Tejo, para o observar no seu conjunto, essa imensa zona húmida e extremamente rica em recursos naturais sem o qual Lisboa não existiria como grande metrópole europeia. E assim poder noutras ocasiões descer para este ou aquele detalhe mais interessante, nomeadamente a sua zona norte, incluindo a bacia quaternária (quer dizer, recente, em termos de cronologia geológica) de Loures.
Estamos aqui em plena Reserva Natural do Vale do Tejo (RNVT), uma área com quase 14.500 hectares, a qual, segundo o respetivo “site” inclui (…) águas estuarinas, mouchões [ilhotas fluviais], salinas, terrenos agrícolas – lezírias – e montado.” Os sapais são característicos destes ecossistemas e, como é sabido são “(…) formações aluvionares periodicamente alagadas pela água salobra e ocupadas por vegetação halofítica [tolerante à salinidade] ou, em alguns casos, por mantos de sal.”
Nos sapais vivem inúmeras poliquetas [anelídeos, vermes aquáticos], moluscos e crustáceos. Aliás, basta atravessar o Tejo na ponte Vasco da Gama para, em momentos de maré baixa, ver inúmeros respigadores apanhando moluscos, sobretudo junto à margem sul. O ser humano vem sempre atraído para os locais de grande riqueza natural, aí retomando a milenar tarefa da recoleção, em nichos muito procurados pelas mais variadas espécies ao longo do ciclo sazonal.
De facto, não é de admirar que, como tantos outros ambientes do mesmo tipo, o estuário constitua [recorrendo de novo ao texto da RNVT] “(…) um berçário para várias espécies de peixes marinhos, caso do linguado-legítimo (…) e do robalo (….), sendo também uma zona de transição entre o meio marinho e o fluvial para peixes migradores, como a lampreia-de-mar (…), a lampreia-de-rio (…), a savelha (…) [peixe afim do sável] e a enguia-europeia (…).” Ora aí é que reside uma das grandes riquezas de qualquer estuário, e deste em particular: local abrigado onde se misturam águas doces e salgadas, ou seja, é um ecossistema costeiro de transição entre os ecossistemas terrestres e os marinhos.
Tudo isto potencia a existência, aqui, de aves aquáticas, que, sempre segundo o texto explicativo da RNVT, dão ao estuário do Tejo uma importância enorme, essa já de âmbito europeu, “(…) dado que os efetivos de espécies invernantes chegam a atingir cerca de 120.000 indivíduos.” E o mesmo folheto especifica: “Com efeito, nesta área protegida invernam mais de 10.000 (…) patos e 50.000 limícolas (os que buscam o alimento nos sedimentos) [são aves que vivem no limo, lodo ou lama, com destaque para o símbolo da reserva, o alfaiate (…) que chega a ter aqui cerca de 25% da população invernante na Europa.
De mencionar, ainda, a presença significativa de muitas outras espécies, nomeadamente o flamingo (…), o ganso-bravo (…) e o pilrito-de-peito-preto (…).” O alfaiate, também conhecido por outras designações, torna-se fácil de reconhecer pela sua plumagem preta e branca e pelo bico revirado para cima (cf. https://pt.wikhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Ave_lim%C3%ADcolaipedia.org/wiki/Alfaiate_(ave). É claro que um estuário como este faz as maravilhas dos biólogos, dos geógrafos, dos fotógrafos, e, cada vez mais, dos muitos apreciadores da “natureza”, saturados como todos estamos da vida complicada em que a “civilização” nos enredou. Por isso o PNVT sugere vários percursos pedestres, de bicicleta ou de automóvel a quem consulte a sua página web.
Isto que refiro é apenas um pobre vislumbre da riqueza natural, ecológica e paisagística da região em que Lisboa se implantou e desenvolveu. Do que dela resta atualmente… o que ela não seria antes da poluição dos nossos dias… e de tantos séculos de história !
Por outro lado, quem deseje um mergulho mais fundo no tempo, e olhe para uma carta geológica da zona sul da Península de Lisboa onde obviamente a cidade se implanta, percebe logo que se trata de uma área muito complexa, entre o grande mar e o peculiar estuário com o seu “Mar da Palha”, com terrenos e morfologias de diversas épocas, ainda mais complicados por se tratar de uma região fortemente exposta a atividade sísmica, verdadeiramente o “calcanhar de Aquiles” de Lisboa: “não há bela sem senão”.
Depois de procurar em inúmeras fontes uma descrição geral da morfologia do solo de Lisboa em relação com a sua ocupação, no fundo, uma síntese do que é a fisicalidade da cidade como produto da interação do meio e do ser humano, recorri ainda com proveito aos trabalhos do meu genial mestre Orlando Ribeiro, em boa hora coligidos pela sua mulher (e igualmente ilustre geógrafa Suzanne Daveau), onde fui encontrar excelentes visões de conjunto da cidade (“Opúsculos Geográficos”, t. III, Lisboa, F. Gulbenkian, 2ª ed., 2014).
São apenas fragmentos magníficos de uma obra de síntese que nunca chegou a poder compor, dificultado pela idade e doença (e onde se traduz a sua cada vez maior propensão para a geografia humana em detrimento da física); mas raros serão os autores que estarão à altura de concretizar tal desígnio, uma monografia de Lisboa e seu “entorno” como nunca se chegou a fazer, tanto mais que a realidade da cidade, e a investigação e as perspetivas sobre Lisboa mudaram consideravelmente nas últimas décadas, e continuam em acentuado dinamismo.
Por exemplo, é muito difícil em breves linhas caracterizar a morfologia do soco geológico e geomorfológico em que assenta não só a urbe como a área imediatamente a oeste a e norte dela. Neste aspeto, agradeço à colega Prof.ª Ana Ramos-Pereira a preciosa ajuda amiga que me prestou.
Digamos apenas que a Área Metropolitana de Lisboa (AML) corresponde a duas sub-regiões, a Norte (península de Lisboa, ou área da Grande Lisboa, como também por vezes é designada, e que é a que aqui nos importa; 9 concelhos: Mafra – Loures – V.ª F.ª de Xira – Sintra – Amadora- Odivelas – Cascais- Oeiras e Lisboa) e a Sul (península de Setúbal). Para resumir (muito) o que se sabe sobre a AML Norte precisaria de várias páginas… nomeadamente se a pudesse aqui articular com o estuário do Tejo. Ela insere-se maioritariamente na Orla Mesocenozóica Ocidental (abreviadamente OMCO) [Mesozoico, era geológica; Cenozóico: era geológica: e, em muito menor parte (zona oriental da Península de Lisboa), na Bacia Cenozóica do Baixo Tejo-Sado (abreviadamente BCTS), duas das três unidades morfoestruturais de Portugal continental (cf. , para melhor desenvolvimento, o excelente artigo especializado na revista Finisterra, LVII (119), de 2022, pp. 7-37, da autoria de Miguel Leal e de Ana Ramos-Pereira. É este último trabalho que me servirá de guia para o que a seguir sucintamente refiro.
A AML-Norte caracteriza-se por um relevo não muito acentuado, genericamente monoclinal (ou seja, afetando camadas paralelas, inicialmente horizontais ou quase), e articulado com uma grande diversidade de tipos de rochas, em relação óbvia com diferentes períodos e fenómenos geológicos (geodinâmica, tectónica, variações do nível do mar, etc.) que a foram constituindo ao longo das eras.
Dominam largamente formações sedimentares (rochas resultantes da deposição e ulterior consolidação de fragmentos): calcários, margas, argilas. Mas não podemos esquecer a imponência relativa do maciço subvulcânico de Sintra (mais conhecido como Serra de Sintra), que domina a região (e entra, invisível, pelo mar dentro), composto por granitos, mas também outras rochas ígneas, como sienitos, dioritos, gabros, e ainda brechas vulcânicas. Igualmente são de referir as rochas metamórficas que abraçam aquele maciço, bem como, e em relação com ele, o Complexo Vulcânico de Lisboa, no qual predomina o basalto, e que tem larga extensão, abarcando amplas zonas dos concelhos de Lisboa, Sintra, Mafra, Loures, etc.
E termino como comecei: nas formações mais recentes que ocorrem no litoral ocidental mas também na várzea de Loures, e, finalmente, nas aluviões já holocénicas (ou seja, datadas do período em que nos encontramos desde há cerca de 11.600 anos…) da planície fluvial do Tejo, as tais ilhotas chamadas mouchões… deixando todo este rico mundo à nossa espera para uma próxima crónica…pois que é muito difícil (mas por isso mesmo estimulante) metê-lo assim num apontamento jornalístico… é preciso uma força telúrica do escrivão para se conter e pôr um fim ao magma do texto!
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